Vencedor do 2º Concurso de Contos ºANDAR Guily Machovec com "Lá em cima do piano"
O 2º Concurso de contos do ºANDAR teve como vencedor Guily Machovec com o conto “Lá em cima do piano”.
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LÁ EM CIMA DO PIANO
Lá em cima do piano há sempre um copo de água que Tia Cio-cio, como é carinhosamente chamada, deixa para refrescar a garganta de tempos em tempos enquanto os alunos erram repetidamente as mesmas notas nos estudos de piano.
O apelido Cio-cio san é herança do amor de seu pai por óperas, sendo este o nome da protagonista da famosa Madame Butterfly de Puccini, e que virou Tia Cio-cio quando sua sobrinha começou a fazer aulas de piano com ela. Daí em diante, as aulas se multiplicaram e os alunos, que eram em sua maioria crianças, cresceram e o apelido continuou.
Agora, tantos anos mais tarde, a professora de piano ensina iniciantes, sem treinamento musical, para pagar as contas da casa deixada pelo seu pai. Os irmãos não se importam que ela viva ali, pois casaram e mudaram há tempo suficiente para terem construído suas vidas sem precisar vender a velha casa que, apesar de grande, sofre pela falta ostensiva de manutenções básicas.
Sentindo o último gole que resta no copo de água limpar a secura do sermão sobre atenção que acabara de dar em umpré-adolescente respondão que errou pela décima terceira vez a mesma parte do Estudo no 3 para piano do método de iniciação, Cio-cio rola os olhos. A impaciência com a falta de atenção e entusiasmo do garoto, obviamente forçado pelos pais a aprender música, a faz fechar o livro e encerrar a aula.
Um ruído da emperrada porta de madeira grunhiu ao abrir e revelar Benjamin, um belo rapaz de seus vinte e dois ou vinte e três anos, que se preparava para apertar a campainha. Tia Cio-cio toca o pré-adolescente para fora e convida Benjamin para sentar-se ao piano a fim de iniciar a terceira aula dele, enquanto ela vai até a cozinha servir-se de um novo copo d’água no jarro de barro que fica sobre a pia. O jarro poderia ficar mais próximo do piano, porém encher o copo é a desculpa perfeita para ganhar dois minutos de descanso da falta de talento alheia.
Repousando o copo sobre o piano, Tia Cio-cio limpa a pequena lousa com o pano para explicar um pouco de teoria musical ao rapaz. Logo nas primeiras frases sobre notação rítmica, as sobrancelhas do rapaz franzem de tal forma a quase empurrar o nariz para junto da boca. Semi-colcheias pontuadas têm esse efeito sobre adultos inexperientes. São como crianças ao se depararem com uma equação do segundo grau pela primeira vez. Aquela meia hora de teoria musical é uma eternidade desprazerosa e inútil, como bem sabe a professora, pois Benjamin nunca vai tocar nada nessa vida. A experiência lhe informava que esse tipo de pessoa sem vocação e com alto nível de autocrítica vai fazer dois meses de aula de desistir. Entretanto, pagou adiantado o mês, então o que importa?
Confirmando a teoria, o aluno logo perde o interesse e passeia a sala com os olhos enquanto a explicação sobre a escala diatônica voa vazia da boca de Cio-cio. Até que Benjamin vê uma foto. Cio-cio no casamento de sua irmã mais nova, última a casar-se quinze anos atrás.
“É a senhora nessa foto?”
O rubor toma as maçãs do rosto de Cio-cio san que tenta mudar o assunto de volta para a escala, mas Benjamin levanta-se e toma o porta-retrato em suas mãos. Para a professora, é como se ele tivesse tocado em suas intimidades. Ela irrita-se com a ousadia e parte para arrancar a fotografia das mãos do rapaz. Mas ele a surpreende.
“A senhora era muito bonita”
“A senhora era muito bonita… A senhora era muito bonita… A senhora era muito bonita… A senhora era muito bonita…”. Aquela frase ecoa dentro da professora como numa caverna enorme repetindo o som em delay. Diminuindo progressivamente ao nada. É o sentimento de Cio-cio sobre a própria vida. Diminuindo progressivamente ao nada. Como aquelas músicas que terminam em fade out, cujo fim é impossível de ouvir. Cujo som torna-se lentamente rarefeito aos ouvidos.
Ela sempre odiou isso nas músicas populares, achava musicalmente pobre não encontrar uma solução harmônica para o final. Seus joelhos bambeiam ao pensar que sua vida está assim, como uma pobre música popular num movimento de fade out. Tia Cio-cio perde os sentidos por um instante e desmaia.
Quando recobra os sentidos, está com o rosto molhado. É a água que Benjamin joga sobre a palma da mão e passa na face da professora para acordá-la, a mesma água que repousava sobre o piano no copo de Cio-cio san. Os olhos assustados do jovem aliviam-se como despertar da professora. O belo garoto está tão perto que Cio-cio o puxa pelo colarinho e beija sua boca, buscando com na língua de Benjamin a própria juventude. O rapaz retribui o beijo, agarrando o seio e derrubando o copo de água que cai, estilhaçando ao chão. Ela tira a blusa dele e ele enfia a mão sob sua saia. A professora geme alto como não fazia há séculos, enquanto Benjamin a põe de costas sobre o piano, mas, ao arrancar e jogar ao chão sua calcinha, Cio-cio o interrompe. Ela o afasta delicadamente e pede que espere um instante, correndo para fora da sala em direção ao quarto. Entra, ofegante, no banheiro do quarto, puxa a saia para cima e senta na privada jorrando a urina acumulada das seis aulas anteriores à de Benjamin. Seis aulas significam, no mínimo, doze copos de água e sua bexiga estava explodindo. Ao enrolar o papel higiênico na sua mão direita, o grunhido da emperrada porta de madeira anuncia a partida de Benjamin. Ela levanta-se sem apertar a descarga. Sem, nem mesmo, tirar o papel higiênico enrolado em sua mão. E anda até a sala.
Ali, o copo estilhaçado no chão, sua calcinha jogada ao lado do piano e a ausência do rapaz que faltou com a decência de fechar a porta.
O piano silenciou.
Depois lançou um olhar de julgamento sobre ela.
Tia Cio-cio percebe o papel higiênico e sua mão. Ela levanta a saia e limpa-se ali mesmo. Empurra a porta que solta seu grunhido emperrado até que fecha. Vai até a cozinha e pega a pá e a vassoura com as quais junta os cacos como quem tenta juntar a própria dignidade.
Ela senta na frente do piano e seus olhos pairam sobre as teclas. Brancas e pretas. Começa a tocar a Sonata ao luar de Beethoven, enquanto lembra-se de como as coisas sempre escaparam de suas mãos. Como as notas que, tocadas, já são nada senão uma lembrança de algo que se dissolve no tempo. Ela para. De repente. O pé ficou no pedal de sustentação, então o som ainda ecoa e ecoa e ecoa cada vez mais baixo, mas ela tira o pé do pedal enquanto ainda havia um pouco de som. Pois ela odeia quando as músicas acabam em fade out.
Levanta-se e vai até o armário do quarto. Abre uma gaveta. Põe uma calcinha nova. Volta até a sala. Arruma o retrato na prateleira na estante. A campainha toca. Ela abre a porta emperrada para a aluna do horário seguinte que lhe dá um bom dia preguiçoso e senta ao piano com uma partitura velha.
A professora pergunta se a aluna quer um copo de água, mas ela recusa e começa a tocar um allegro desastrosamente equivocado.
Tia Cio-cio passa reto pelo jarro d’água na cozinha e encaminha-se para a dispensa da lavanderia onde pega um veneno de rato. Ela serve uma dose generosa em seu copo e preenche com água. Volta para a sala e põe o copo sobre o piano. Senta-se ao lado da aluna que acaba de tocar a música. A professora acena com a cabeça e diz: “Da capo”.