2º Concurso de Contos ºANDAR

Vencedor do 2º Concurso de Contos ºANDAR Guily Machovec com "Lá em cima do piano"

O 2º Concurso de contos do ºANDAR teve como vencedor Guily Machovec com o conto “Lá em cima do piano”.
Quer conhecer mais o trabalho do nosso vencedor? Siga no Instagram @guilymachovec
Curta também a entrevista que fizemos com ele no nosso canal do Youtube.

Boa leitura!!

LÁ EM CIMA DO PIANO

Lá em cima do piano há sempre um copo de água que Tia Cio-cio, como é carinhosamente chamada, deixa para refrescar a garganta de tempos em tempos enquanto os alunos erram repetidamente as mesmas notas nos estudos de piano.

O apelido Cio-cio san é herança do amor de seu pai por óperas, sendo este o nome da protagonista da famosa Madame Butterfly de Puccini, e que virou Tia Cio-cio quando sua sobrinha começou a fazer aulas de piano com ela. Daí em diante, as aulas se multiplicaram e os alunos, que eram em sua maioria crianças, cresceram e o apelido continuou.

Agora, tantos anos mais tarde, a professora de piano ensina iniciantes, sem treinamento musical, para pagar as contas da casa deixada pelo seu pai. Os irmãos não se importam que ela viva ali, pois casaram e mudaram há tempo suficiente para terem construído suas vidas sem precisar vender a velha casa que, apesar de grande, sofre pela falta ostensiva de manutenções básicas.

Sentindo o último gole que resta no copo de água limpar a secura do sermão sobre atenção que acabara de dar em umpré-adolescente respondão que errou pela décima terceira vez a mesma parte do Estudo no 3 para piano do método de iniciação, Cio-cio rola os olhos. A impaciência com a falta de atenção e entusiasmo do garoto, obviamente forçado pelos pais a aprender música, a faz fechar o livro e encerrar a aula.

Um ruído da emperrada porta de madeira grunhiu ao abrir e revelar Benjamin, um belo rapaz de seus vinte e dois ou vinte e três anos, que se preparava para apertar a campainha. Tia Cio-cio toca o pré-adolescente para fora e convida Benjamin para sentar-se ao piano a fim de iniciar a terceira aula dele, enquanto ela vai até a cozinha servir-se de um novo copo d’água no jarro de barro que fica sobre a pia. O jarro poderia ficar mais próximo do piano, porém encher o copo é a desculpa perfeita para ganhar dois minutos de descanso da falta de talento alheia.

Repousando o copo sobre o piano, Tia Cio-cio limpa a pequena lousa com o pano para explicar um pouco de teoria musical ao rapaz. Logo nas primeiras frases sobre notação rítmica, as sobrancelhas do rapaz franzem de tal forma a quase empurrar o nariz para junto da boca. Semi-colcheias pontuadas têm esse efeito sobre adultos inexperientes. São como crianças ao se depararem com uma equação do segundo grau pela primeira vez. Aquela meia hora de teoria musical é uma eternidade desprazerosa e inútil, como bem sabe a professora, pois Benjamin nunca vai tocar nada nessa vida. A experiência lhe informava que esse tipo de pessoa sem vocação e com alto nível de autocrítica vai fazer dois meses de aula de desistir. Entretanto, pagou adiantado o mês, então o que importa?

Confirmando a teoria, o aluno logo perde o interesse e passeia a sala com os olhos enquanto a explicação sobre a escala diatônica voa vazia da boca de Cio-cio. Até que Benjamin vê uma foto. Cio-cio no casamento de sua irmã mais nova, última a casar-se quinze anos atrás.

“É a senhora nessa foto?”

O rubor toma as maçãs do rosto de Cio-cio san que tenta mudar o assunto de volta para a escala, mas Benjamin levanta-se e toma o porta-retrato em suas mãos. Para a professora, é como se ele tivesse tocado em suas intimidades. Ela irrita-se com a ousadia e parte para arrancar a fotografia das mãos do rapaz. Mas ele a surpreende.

“A senhora era muito bonita”

“A senhora era muito bonita… A senhora era muito bonita… A senhora era muito bonita… A senhora era muito bonita…”. Aquela frase ecoa dentro da professora como numa caverna enorme repetindo o som em delay. Diminuindo progressivamente ao nada. É o sentimento de Cio-cio sobre a própria vida. Diminuindo progressivamente ao nada. Como aquelas músicas que terminam em fade out, cujo fim é impossível de ouvir. Cujo som torna-se lentamente rarefeito aos ouvidos.

Ela sempre odiou isso nas músicas populares, achava musicalmente pobre não encontrar uma solução harmônica para o final. Seus joelhos bambeiam ao pensar que sua vida está assim, como uma pobre música popular num movimento de fade out. Tia Cio-cio perde os sentidos por um instante e desmaia.

Quando recobra os sentidos, está com o rosto molhado. É a água que Benjamin joga sobre a palma da mão e passa na face da professora para acordá-la, a mesma água que repousava sobre o piano no copo de Cio-cio san. Os olhos assustados do jovem aliviam-se como despertar da professora. O belo garoto está tão perto que Cio-cio o puxa pelo colarinho e beija sua boca, buscando com na língua de Benjamin a própria juventude. O rapaz retribui o beijo, agarrando o seio e derrubando o copo de água que cai, estilhaçando ao chão. Ela tira a blusa dele e ele enfia a mão sob sua saia. A professora geme alto como não fazia há séculos, enquanto Benjamin a põe de costas sobre o piano, mas, ao arrancar e jogar ao chão sua calcinha, Cio-cio o interrompe. Ela o afasta delicadamente e pede que espere um instante, correndo para fora da sala em direção ao quarto. Entra, ofegante, no banheiro do quarto, puxa a saia para cima e senta na privada jorrando a urina acumulada das seis aulas anteriores à de Benjamin. Seis aulas significam, no mínimo, doze copos de água e sua bexiga estava explodindo. Ao enrolar o papel higiênico na sua mão direita, o grunhido da emperrada porta de madeira anuncia a partida de Benjamin. Ela levanta-se sem apertar a descarga. Sem, nem mesmo, tirar o papel higiênico enrolado em sua mão. E anda até a sala.

Ali, o copo estilhaçado no chão, sua calcinha jogada ao lado do piano e a ausência do rapaz que faltou com a decência de fechar a porta.

O piano silenciou.
Depois lançou um olhar de julgamento sobre ela.

Tia Cio-cio percebe o papel higiênico e sua mão. Ela levanta a saia e limpa-se ali mesmo. Empurra a porta que solta seu grunhido emperrado até que fecha. Vai até a cozinha e pega a pá e a vassoura com as quais junta os cacos como quem tenta juntar a própria dignidade.

Ela senta na frente do piano e seus olhos pairam sobre as teclas. Brancas e pretas. Começa a tocar a Sonata ao luar de Beethoven, enquanto lembra-se de como as coisas sempre escaparam de suas mãos. Como as notas que, tocadas, já são nada senão uma lembrança de algo que se dissolve no tempo. Ela para. De repente. O pé ficou no pedal de sustentação, então o som ainda ecoa e ecoa e ecoa cada vez mais baixo, mas ela tira o pé do pedal enquanto ainda havia um pouco de som. Pois ela odeia quando as músicas acabam em fade out.

Levanta-se e vai até o armário do quarto. Abre uma gaveta. Põe uma calcinha nova. Volta até a sala. Arruma o retrato na prateleira na estante. A campainha toca. Ela abre a porta emperrada para a aluna do horário seguinte que lhe dá um bom dia preguiçoso e senta ao piano com uma partitura velha.
A professora pergunta se a aluna quer um copo de água, mas ela recusa e começa a tocar um allegro desastrosamente equivocado.

Tia Cio-cio passa reto pelo jarro d’água na cozinha e encaminha-se para a dispensa da lavanderia onde pega um veneno de rato. Ela serve uma dose generosa em seu copo e preenche com água. Volta para a sala e põe o copo sobre o piano. Senta-se ao lado da aluna que acaba de tocar a música. A professora acena com a cabeça e diz: “Da capo”.