Vencedor do 1º Concurso de Contos do ºANDAR

FINA COMO UMA FACA

FINA COMO UMA FACA

– Por que a senhora é tão frígida, mãe?
A frase soou já gasta, como vinda de outra boca, mas o que a intrigou foi a aparente desconexão com o momento. Não o questionaria porque questioná-lo seria abrir espaço para a pergunta. Mesmo de costas para o filho, o seu rosto nada expressava, mas passou a cortar o tomate mais rapidamente.
A faca cortando a pele com precisão e com suavidade também, suas mãos executavam a graça de uma crueldade, afinal ser mãe era isso: uma faca cortando tomates. E, no entanto, o corte era sublime, a pressão que o metal exercia sobre a fina pele até o momento da pequena explosão como se o momento do corte fosse para o tomate o auge de sua vida.
Os pequenos pedaços cortados deram à mãe a exata noção do tempo que o grande silêncio submetera não só a ela e ao filho, mas também à cozinha e ao resto da casa, incluindo o cachorro no quintal. Virando-se então, sem saber o que diria a seguir, mas tinha esperanças que nesse pequeno giro alguma ação lhe fosse dada, percebeu que estava de algum modo pronta como um soldado. Foi nesse pequeno giro, de avental e faca na mão, que lhe foi concedida a luz do improviso:
– Não pode comer se ainda não lavou as mãos.
– Mas eu lavei, sim.
– Eu sei que você não lavou.
– Então prove!
Ele não desistiria! Por que quer me ferir, perguntava para si enquanto segurava a faca como quem segura uma lanterna no escuro.
– Não me amole! Eu ainda não terminei a salada.
Eu espero! Não estou com fome e já arrumei a mochila.
– Pois então espere! Disse ela quase de volta.
Terminarei a salada e então tudo ficará bem, decidiu. Foi no giro de volta à pia, no giro que deveria ser rápido mas que, no entanto, tentava fazê-lo com grande esforço, que viu a lanterna cair e então o breu. A faca deslizou pelo chão atravessando a mesa até os pés do garoto. Os dois se olharam atentos e graves e ela demonstrou pela primeira vez uma expressão de horror, que a tanto custo tentava esconder.
O filho pegou a faca e por ser pequeno – apesar das sobrancelhas grossas que revelariam uma cara peluda – por ser pequeno a faca parecia uma arma ainda maior. Só preciso agir naturalmente, pensava ela, ele é muito pequeno e crianças esquecem rápido… O que tinha que fazer agora era se controlar, esconder dele aquele pesadelo…
Ele só precisava comer e o transporte escolar chegaria e então ela estaria livre para sofrer em paz.
Ah, por que ela ainda lembrara de quando era pequena e ouvia a mãe lamentar enquanto fechava a porta do quarto com força “eu não aguento mais”? Que frase boba, que frase que todos dizem.
– A senhora está muito nervosa, disse o filho apontando a faca que, vista de frente, parecia muito mais afiada.
– Me dê isso aqui – e se camuflando ainda mais no poder de mãe que tinha, completou: isso não é para criança.
Talvez porque a mãe tirou-lhe a faca com autoridade e o menino se sentiu desarmado, ou talvez a faca tenha sido a distração necessária até que a pergunta fosse feita:
– Por que o papai saiu de casa?
A mãe pousou a faca na mesa. Evitou a conversa ao máximo, mas a verdade é que estava pronta:
– Às vezes, o amor entre pessoas casadas pode acabar e elas não ficam mais felizes quando estão morando na mesma casa. Mas isso não tem nada a ver com você, o amor que seu pai e eu sentimos por você é para sempre e isso não vai mudar nunca.
Desde que o marido saíra de casa na semana anterior e ela sabia que dessa vez era definitivo – “eu não aguento mais” – ela pensava em como contar isso ao filho e ficou feliz por ter conseguido falar exatamente o que ensaiou, de forma serena, escondendo aquilo que a fazia tremer por dentro.
– Então o amor de vocês acabou para sempre?
– Sim! Mas isso não quer dizer que…
O menino a interrompeu violentamente.

– Pra mim, a senhora ainda ama ele. Ainda ama muito.
– Meu filho, me escute.. O garoto interrompeu de novo.
– Mas ele não te ama mais, isso eu sei.
Era como se o filho enterrasse a faca em sua barriga e isso a fizesse desmoronar em pequenos pedaços.
– Por que você diz isso?
Olhava o filho cada vez mais parecido com o pai – e também esse jeito autoritário de falar – se refazendo para enfim terminar essa missão, ajudar o filho a atravessar essa ponte enquanto que ela mesma ainda não sabia como fazê-lo. Mas é bem verdade que gostava dessa dor, desse esforço de se reerguer, de imaginar uma agulha perfurando todo o seu corpo, costurando os pedaços.
– Eu ouvi papai dizer isso a Tio Juca…que a senhora é frígida e Lúcia era mais
alegre. Por que você não pode ser menos frígida?
De novo os pedacinhos, de novo essa sensação de estar se desintegrando, de
afinar-se cada vez mais até restar uma só fatia de mulher, fina como uma faca
– Você sabe o que é frígida, garoto?
– Não.
– Você quer saber mesmo o que aconteceu? Quer saber por que o seu pai saiu de casa, do porquê brigávamos tanto e do porquê minha vida foi virando esse lixo?
O garoto chorava assustado enquanto a mãe gritava com a faca na mão. Então o ônibus buzinou e ele agarrou a mochila.
– Diga ao seu pai que ele só pensa nele mesmo… e que crianças ouvem tudo!!! E que ele não venha mais nessa casa ou eu… e sustentava a faca no alto… Saia daqui!
O menino saiu em disparada para o ônibus.
Oh, era tarde demais, ela dizia, era tarde demais.

 

 

@fabiofrancoo